segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O SONHO DE ÍCARO

O avião ainda taxiava na pista do aeroporto em Dallas, quando ouvi a aeromoça avisando, pelo sistema de comunicação, que nove pessoas haviam desafivelado o cinto de segurança antes da autorização do capitão! Que colocassem o cinto novamente, sob pena de terem o número de seus assentos divulgados! Ou seja, todo mundo saberia quem eram os infratores. Imaginei-me estrela” do Big Brother, vigiada a cada segundo! Não posso fazer uma bobagenzinha sequer e sou logo descoberta. George Orwell, sem dúvida, sabia das coisas, e 1984 não pode ser considerada obra de pura ficção. Assustador, não?
Adoro viajar, mas confesso – morro de medo de avião. A preocupação se instala no momento da emissão do bilhete aéreo, e o pavor vai e volta o tempo todo. Resisto bravamente e não desisto nunca. Especialistas dizem que o avião é o meio de transporte mais seguro e, felizmente, todas as estatísticas confirmam. Levantamento feito nos Estados Unidos, englobando um período de cinco anos, mostrou que as mortes em desastres aéreos corresponderam a 0,08% do total, enquanto as fatalidades nas estradas somaram 39%! Estar num carro é 487 vezes mais perigoso do que andar de avião. E mais! As atividades domésticas nos expõem a acidentes 224 vezes mais do que viajar pelos céus. Cada vez que me atrevo a cozinhar, tenho consciência de que o perigo me ronda e, por isso, decidi visitar pouco essa área do apartamento. Por que correr o risco de me cortar com uma faca afiada, ou sofrer uma queimadura dolorosa?
Tais números não me deixam mais calma... o medo é irracional, eu sei, como todos os outros que carregamos vida afora. Provavelmente, é porque não posso abrir a janela e pular para o chão, e também porque o piloto não vai estacionar para que eu desça, caso seja preciso. Psicólogos dizem que esse medo tem a ver com receio de mudanças, pavor de coisas novas, e coisas do estilo. No meu caso, todos sabem que isso não faz o menor sentido... precisam descobrir outra razão para me explicar.
O ser humano, desde que tomou consciência do mundo, quis voar, e temos Ícaro talvez como o mais famoso dos aficionados. Depois que conseguiu fugir do Labirinto de Creta com as asas que seu pai, Dédalo, havia fabricado, não quis mais parar. Inebriado pela sensação de liberdade que sentia, aproximou-se demais do Sol, como sabemos, e acabou morrendo afogado no mar onde caiu.
Nós, brasileiros, temos Santos Dumont, considerado pioneiro da Aviação por nós e pelos franceses. Aqui nos Estados Unidos, como na maioria dos países, são os irmãos Wright que levam o crédito. Consta que esses dois voaram três anos antes do 14-Bis dar seu show, mas fato é que não foi um vôo com motor aeronáutico, não houve testemunhas e, o mais grave, não estava lá um comitê científico para aprovar o feito. O “avião” deles foi catapultado, tendo apenas o mérito de se manter um tempo no ar... e isso me parece bem diferente do vôo realizado pelo nosso brasileiro.
Vindo de família próspera, Santos Dumont pode aperfeiçoar seus conhecimentos de mecânica na França, onde, em outubro de 1906, realizou o primeiro vôo com um aparelho mais pesado do que o ar, que havia levantado vôo por seus próprios meios, sem o auxílio de catapultas. O 14-Bis cumpriu um circuito pré-estabelecido, na presença de especialistas do Aeroclube da França e de testemunhas, percorrendo 60 metros, a 2 metros do chão. Menos de um mês depois, diante de muitas testemunhas, nosso gênio conseguiu voar a cerca de 6 metros de altura por 220 metros! Digam o que disserem, para mim, é ele o pai da Aviação. Foi uma pena que ele não tenha patenteado suas invenções, como fizeram os outros de sua época. Seria a prova perfeita para apresentar aos fãs dos Wright. Ele era, provavelmente, um ser humano modesto, a quem não interessavam as honrarias. Não pude comprovar, mas li que, embora eleito para a Academia Brasileira de Letras, não assumiu a cadeira que lhe foi reservada.
Nosso Ícaro não se afogou no mar. Apressou sua partida definitiva para o céu, em 1932, afogado num mar de desilusão e de tristeza ao ver seu invento usado para levar a morte, durante a Primeira Guerra Mundial. Uma pena.
Para alegrar essa conversa, mudo de assunto. Voltava da Philadelphia para Houston e, como tinha pouco tempo até a hora do embarque, não quis me atracar com o livro que levava na bolsa. Achei que seria muito mais interessante apreciar o espetáculo da vida, cujos atores são as pessoas que transitam por aí, a maioria sem ter tido, ainda, seus 15 minutos de glória. Eis que surge, empurrando um carrinho de bebê rosa, uma loura cinquentona, corpo bem feito recoberto por um conjunto de plush preto, uma daquelas a quem todos chamam de “perua”. A madame chamava atenção, sem dúvida. E logo, logo, todos ostentavam um sorriso debochado. Não era um lindo bebê que ia naquele carrinho: via-se uma cachorrinha poodle, daquelas mínimas, que bem parecia filha da Madame, uma verdadeira peruinha. Com mil lacinhos fúcsia, fazia o maior charme recostada na bolsa de fraldas padrão onça que também fazia parte do show.
Depois que as duas entraram no finger, a funcionária responsável pelo embarque comentou que se diverte muito observando quem passa por aquela sala de espera. Não mencionou diretamente o carrinho de bebê com a cachorrinha, mas era óbvio que era isso que a fazia rir. Toda essa história me distraiu e, quando entrei no avião, sentia menos medo.
A tal funcionária deve ter estímulos de todo tipo para se divertir, pois o movimento nos aeroportos americanos sempre me impressiona, mesmo acostumada a ir também à Europa, onde está o aeroporto com maior volume de vôos internacionais, o Heathrow, em Londres. Mas aqui nos Estados Unidos, as estatísticas são, realmente, um assombro.
Tenho vindo para Houston pela Delta, que oferece bons preços e viagens bem confortáveis. É obrigatória a escala em Atlanta, que tem seu aeroporto de inacreditáveis dimensões sempre lotado. São 182 pontos de embarque, com 1.300 vôos diários para 150 destinos internos e 95 no mundo afora. Em 2008, foram nada mais, nada menos do que 978 mil pousos e decolagens, com 90 milhões de passageiros passando por seus terminais. Ouvi dizer que ultrapassou os números do de Los Angeles, igualmente enorme e freqüentado. Para se ter uma idéia desses dados, é só comparar com o nosso Galeão, que tem vôos para 32 destinos no Brasil e 19 internacionais.
Falando em Brasil, temos uma estatística muito desagradável no que se refere ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, que é o sexagésimo sexto em movimento no mundo e, ao mesmo tempo, o terceiro em número de vôos atrasados!
Goethe perguntava – “Almejas voar, mas temes ficar tonto?”. Fico bastante tonta com os vôos de minha fértil imaginação, que me leva muito mais alto e mais longe do que qualquer avião ou foguete levaria. Sinto-me para além desse universo conhecido. Deve ter sido essa tonteira gostosa que os sonhos nos causam que levou Cecília Meirelles a nos dizer: “Liberdade de voar num horizonte qualquer, liberdade de pousar onde o coração quiser.” E lá vou eu, ao sabor do destino e da imaginação, decidindo, sem medo, onde vou querer pousar.